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Sinta a Negritude

Por Osmar Gomes dos Santos

É preciso sentir na pele o racismo, assim como é preciso sentir, nessa mesma pele negra, o valor da cor e da história que carrega.

Reconhecer-se como negro significa enxergar-se para além dos estereótipos forjados por um regime imperialista e de supremacia que dominou a ciência entre o final do século XVIII e o início do século XIX.

Essa reflexão é amplamente defendida por Kabengele Munanga, eminente antropólogo congolês-brasileiro, um dos mais influentes intelectuais do país – e do mundo – , cuja voz sempre se ergueu altiva na defesa do valor do povo negro.

Munanga foi o primeiro professor negro da Universidade de São Paulo (USP), onde concluiu seu doutorado, em 1977. Como docente, atuou de 1980 a 2012, contribuindo para formar boa parte dos letrados que hoje fortalecem a negritude brasileira.

Seus estudos constituem uma base sólida, calcada na pesquisa antropológica dos afro-brasileiros. Estão presentes em suas obras temas como racismo, identidade negra e multiculturalismo, iluminando o debate antirracista e a educação no país.

O conjunto literário produzido por Munanga, com mais de 150 trabalhos, mantém vivo o debate em torno da temática racial, abordando questões como o tom da pele, preconceitos, julgamentos sociais, orgulho e identidade.

No tocante à identidade, critica aquilo que todo negro sente diariamente: o julgamento por causa da cor. Em um estado de alerta constante, a violência cometida contra pessoas em razão do tom de pele torna-se ainda mais visível no cotidiano urbano.

Em todos os ambientes sociais, o negro é visto ou como alguém inferior ou como perigoso, criminoso em potencial, aquele que subtrai um bem, saca uma arma e atira, ou violenta uma mulher.

A desconfiança é latente e a vigilância sobre o corpo negro é acentuada, redobrada, triplicada, permanente. Alguém cuja conduta é sempre vista com suspeita, necessitando do olhar atento e desconfiado. O reconhecimento de valores, da índole, do caráter, da capacidade é feito às avessas.

Primeiro, julga-se o que está por fora: a capa, o que se vê. Só depois, se houver oportunidade, avalia-se a essência, sob a camada de uma pele preta que sangra da mesma cor que qualquer outra.

Como se características humanas não fossem inatas a todo indivíduo, independentemente de cor. Forja-se, assim, uma identidade para os negros, construída sobre preconceitos que insistem em não cessar, ainda que se moldem sutilmente ao longo do tempo.

Mesmo quando há um julgamento positivo acerca da conduta de uma pessoa negra, ele é eivado de preconceito, ainda que silencioso. Algo do tipo: “um preto de alma branca”, “um preto de valor”, “um preto inteligente”.

Qualidades que, no olhar dominador, não passam de concessões: valores emprestados a alguém que teria “superado a barreira” que o separa daquele negro comum e que, por isso, é colocado no mesmo patamar dos brancos.

É tempo de negritude. De autoafirmação dos valores que os negros carregam consigo, não em contraposição aos valores tidos como “brancos”, mas como ferramenta de resgate, de autonomia e de valorização. Negritude enquanto mecanismo social que se coloca em equilíbrio com todos os demais sistemas de valores.

O que precisa ser combatido, todavia, é o modelo colonialista e eurocêntrico arquitetado por séculos, ao qual aprendemos a nos dobrar. Modelo que influenciou a teledramaturgia, o cinema, a publicidade, o sistema educacional e tantas outras áreas.

Espaços onde o negro ainda é minoria, contracenando em papéis de menor importância ou que reforçam uma imagem de inferioridade: a doméstica, o vendedor ambulante, o motorista, o bandido. Noutras cenas, sequer aparece na promoção de marcas, serviços e produtos. Vide a clássica família do comercial de margarina.

Negritude para mudar, para construir posição, para se afirmar.

A carne mais barata do mercado, como denunciou Elza Soares em sua canção, não precisa ser a carne negra. Melhor ainda seria que a carne não tivesse cor, e que o valor de cada vida não fosse medido pelo tom da pele que se vê.

Seria esse um ideal possível de ser alcançado?

Osmar Gomes dos Santos é Juiz de Direito na Comarca da Ilha de São Luís (MA).
Membro das Academias Ludovicense de Letras, Maranhense de Letras Jurídicas, da ALMA – Academia Literária do Maranhão e da AMCAL – Academia Matinhense de Ciências, Artes e Letras.

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