Em uma decisão que expõe uma das práticas mais silenciosas — porém recorrentes — de manipulação do sistema eleitoral brasileiro, o juiz Gabriel Almeida de Caldas, da 40ª Zona Eleitoral de Tutóia, cassou nesta quarta-feira (9) os mandatos de dois vereadores eleitos em 2024 pelo partido Avante. A sentença, que ainda cabe recurso, reconhece a existência de fraude à cota de gênero, por meio do registro de candidaturas femininas fictícias com o objetivo de cumprir formalmente o percentual mínimo exigido por lei, mas sem promover efetiva participação política das mulheres.
Os vereadores cassados são José de Arimatea Oliveira do Espírito Santo, conhecido como Matea do Regino, e Paulo Roberto Galvão de Caldas, o Paulinho. Ambos perderam os mandatos após a Justiça Eleitoral acolher, integralmente, uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) que denunciava o esquema de candidaturas de fachada dentro da chapa proporcional do partido.
De acordo com a decisão, o Avante protocolou 15 candidaturas ao cargo de vereador em Tutóia no pleito de 2024. Destas, 10 eram homens e 5 mulheres — número que, à primeira vista, respeitava o mínimo legal de 30% de candidaturas de cada sexo, conforme o §3º do artigo 10 da Lei nº 9.504/1997.
No entanto, a investigação revelou que pelo menos parte dessas candidaturas femininas era inexistente na prática. As supostas candidatas não teriam feito campanha, não investiram recursos, tampouco tiveram presença nas ruas ou redes sociais. Em alguns casos, sequer votaram em si mesmas. Esses indícios, cada vez mais utilizados pela Justiça Eleitoral em todo o país, são considerados sinais clássicos de “candidaturas laranjas”.
A fraude à cota de gênero é classificada como grave porque distorce o sistema proporcional e fere diretamente a política de inclusão feminina no processo eleitoral, estabelecida por lei como forma de combater a histórica sub-representação das mulheres na política.
Na sentença, o juiz Gabriel Caldas foi enfático ao reconhecer a fraude. Com base em jurisprudência consolidada do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), especialmente a Súmula 73, ele impôs um conjunto de seis determinações punitivas ao partido Avante e aos vereadores investigados:
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Reconhecimento formal da fraude à cota de gênero pelo partido Avante;
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Anulação do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (DRAP) da legenda em Tutóia;
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Cassação dos diplomas de José de Arimatea e Paulo Roberto Galvão;
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Anulação de todos os votos recebidos pelo Avante para o cargo de vereador;
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Determinação de recontagem dos quocientes eleitoral e partidário, com redistribuição das vagas na Câmara Municipal de Tutóia;
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Comunicação imediata ao Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão (TRE-MA), que agora deve analisar o caso em grau de recurso.
A fraude à cota de gênero não é novidade. Desde que a legislação passou a exigir o mínimo de 30% de candidaturas femininas nas chapas proporcionais, partidos em diversas regiões do país têm sido flagrados utilizando mulheres apenas como “número” para cumprir o requisito. Algumas sequer têm filiação partidária efetiva ou consciência de que estão registradas como candidatas.
Em 2022, o TSE reafirmou que, uma vez provada a fraude, todos os votos da legenda devem ser anulados, e não apenas das candidatas fictícias. A medida busca desestimular esse tipo de manipulação e preservar a integridade do processo democrático.
Com a nulidade dos votos atribuídos ao Avante, a composição da Câmara Municipal de Tutóia deve sofrer alterações imediatas. A recontagem dos quocientes partidários pode beneficiar outros partidos e candidatos que ficaram de fora na primeira apuração. Essa mudança será determinada após decisão do TRE-MA, que agora tem a responsabilidade de confirmar ou reverter a sentença da primeira instância.
A decisão de hoje levanta questões maiores: até que ponto os partidos políticos estão comprometidos com a inclusão feminina na política? E quem, dentro das estruturas partidárias, lucra com candidaturas de fachada que deturpam a regra da paridade?
Enquanto isso, o caso de Tutóia se junta a uma série de decisões recentes em todo o Brasil que demonstram que a Justiça Eleitoral está mais atenta — e disposta — a punir de forma exemplar aqueles que tratam a lei como um mero obstáculo contornável.