O trabalho de inteligência policial começa muito antes da busca de dados. Essa
atividade se inicia na personalidade do profissional, pois a discrição pode salvar
milhares de vidas
“[…] falou o Senhor a Moisés, dizendo: ‘envia homens que espiem a terra de Canaã,
que eu hei de dar aos filhos de Israel’. […] Retornando da missão, as pessoas dela
incumbidas passaram a relatar os dados obtidos”. O trecho bíblico mostra como a
inteligência policial é fundamental para a coleta de dados acerca de uma situação. A
partir da análise das informações, as decisões são tomadas. É uma tarefa nobre que
demanda paciência. A sobrevivência dos mocinhos depende dessa persistência.
Quando começou a Revolução Cognitiva, essa atividade saiu do campo instintivo e
entrou na civilização.
O jornalista, escritor e pesquisador Nelson Melo, autor de dois livros sobre facções
criminosas no Maranhão, conversou com alguns policiais civis e militares sobre a
atividade de Inteligência, a fim de mostrar ao público que essa tarefa representa um
esforço mental em prol de um objetivo social. Em seu trabalho acadêmico intitulado
“A importância da atividade de Inteligência no combate ao crime organizado no
Maranhão”, o delegado de Polícia Civil Marcos Affonso Júnior explica que a
inteligência policial é uma das modalidades de Inteligência, sendo voltada para
questões táticas de repressão e investigação de ilícitos e grupos infratores.
O delegado Marcos Affonso Júnior, ao citar Celso Moreira Ferro Júnior, frisa que a
inteligência policial é a atividade que objetiva a obtenção, análise e produção de
conhecimentos de interesse de segurança pública no território nacional, sobre fatos e
situações de imediata ou potencial influência da criminalidade, e também assessorar as
ações de polícia judiciária e ostensiva, por intermédio da análise, compartilhamento e
difusão de informações.
“Existe uma diferença entre a atividade de inteligência de Estado e a atividade de
inteligência policial. Enquanto a primeira prima pelo assessoramento das autoridades
de governo, no processo decisório, a segunda busca a produção de provas da
materialidade e de autoria de crimes”, assinala o delegado. O fato é que, em uma
guerra, nem sempre a quantidade decide a vitória de um dos lados do combate, como
observou o escritor Nelson Melo. Em muitos casos, a qualidade é mais importante.
Nesse sentido, introjetar, arquetipicamente, as características de Ulisses é mais
vantajoso do que repetir o comportamento de Aquiles.
Aquiles, filho de Peleu e da deusa Tétis, era destemido. Mas Ulisses era ardiloso. O
esforço cognitivo de Odisseus teve sua contribuição na tomada de Troia pelos aqueus.
Aqui, observa-se como a atividade de Inteligência define o que é falso e verdadeiro.
Em Filosofia, segundo Nelson Melo, que estuda as guerras históricas para
compreender o fenômeno atual do crime organizado, existe algo conhecido como
“Navalha de Occam”, expressão relacionada ao filósofo inglês William de Occam
(1285-1347).
Em outras palavras, significa que, segundo o jornalista, diante de um problema com
várias explicações, é mais prudente “cortar” aquela mais complicada. Às vezes, a
hipótese mais simples fundamenta uma evidência. Por este motivo, é importante
coletar o máximo de informações acerca de um fato levantado. “Palamedes”, policial
entrevistado pelo repórter, disse que, no mais, a inteligência policial tem como foco
buscar conhecimento, para subsidiar a tomada de decisões. Nesse ponto, a fonte
estabelece uma distinção entre essa atividade e a investigação policial.
“No Maranhão, ainda não temos uma política de inteligência integrada. Por exemplo:
temos a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Corpo de Bombeiros Militar e o sistema
penitenciário. Mas cada uma dessas esferas fica na sua ‘ilha’. Quase não há integração.
A inteligência, apesar de buscar conhecimentos, na prática também auxilia na
elucidação de crimes. Isto é, ajuda na investigação policial. Nem sempre o que
conhecemos é o que podemos provar. A investigação trabalha com a produção de
provas”, ressaltou “Palamedes”, que é uma referência ao personagem grego que viajou
até Ítaca para convencer Ulisses a integrar a coalizão contra os troianos, após o “rapto”
de Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta.
De acordo com esse policial, a investigação enfatiza a produção de provas e está muito
ligada aos fatos. Já a inteligência se preocupa com o fator social e suas
causas/consequências. O que levou àquele fato? Quais foram seus efeitos? Isso será
crucial na tomada de decisões. Para ele, essa atividade deveria levar em consideração
as particularidades de cada estado, município e bairro. Por isso, tratar a inteligência
policial de maneira generalizada, na opinião de “Palamedes”, pode levar a erros por
conta das dificuldades enfrentadas nos trabalhos de campo. “Cada região tem sua
especificidade. Há muitos detalhes, que vão desde a formação urbana até o tipo de
crime ali praticado. Existe a geografia, a localização dos grandes centros, que
favorecem a atuação das facções. No Rio de Janeiro e São Paulo, o crime está
localizado no centro, na capital, com mais fervor e mais frequência. É um crime mais
ousado. porque lá as comunidades são verticais. Há um grau de dificuldade maior para
adentrar. Então, a inteligência tem que agir de forma diferente para obter dados”,
analisou.
Ele disse que, no Paraná e São Paulo, o crime organizado é mais empresarial, pois
busca a importação e exportação de drogas e armas de fogo. Nesse contexto, os portos
são as “meninas dos olhos” das facções. Então, o trabalho de inteligência é mais
voltado para esse combate. No Maranhão, como “Palamedes” analisou, a estrutura do
crime e do “asfalto” (geográfica) é diferente. A capital, por exemplo, possui entradas e
saídas que podem ser facilmente monitoradas pela polícia, o que dificulta a ação dos
bandidos. “Aqui, todas as comunidades são frequentadas, podemos dizer assim, por
policiais. É diferente de Teresina, Manaus e Fortaleza. As facções na Grande Ilha estão
mais preocupadas em brigar entre si do que em faturar. Apesar de as primeiras facções
do Maranhão terem surgido em São Luís, o crime organizado está vindo do interior
para a capital, como no caso do PCC . Vai chegar um tempo em que viveremos em
uma ‘ilha’ de fato e de direito”, pontuou o policial.
Portanto, segundo “Palamedes”, a inteligência policial precisa estar atenta às
características urbanas da região metropolitana de São Luís para combater as facções
criminosas. Uma “teoria geral”, na visão dele, não é uma boa ideia. O segredo é traçar
um perfil regional para encaixar o faccionado nessa particularidade geográfica. A
intuição, nesse cenário, não pode ser descartada. “Existe uma palavra que sempre
usamos e que se torna fundamental para o agente de campo, mas também cabe ao
analista. É o tirocínio policial. Às vezes, isso só é despertado depois de um certo
tempo de operações”, ponderou.
O filósofo argelino Albert Camus, como lembrou o repórter Nelson Melo, nunca
participou de uma campana policial nem atuou exfiltração de pessoas, como o ex-
agente da CIA Tony Mendez, da “Operação Argo”. Mas sabia que é preciso passar por
uma experiência, pois não se pode criá-la. Nenhum policial nasce policial, assim como
nenhum jornalista nasce jornalista. Depois de um tempo na carreira, com os erros e
acertos, aprende-se a ser um bom profissional. A inteligência policial entra nessa
“regra”, na qual cada dia de serviço é uma oportunidade para se reciclar.